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QUEM AINDA ESCREVE CARTAS?
Acadêmico: José Renato Nalini
Cartas, pequenos objetos, crucifixos. Vamos adicionando lembranças

Quem ainda escreve cartas?

A epistolografia é a arte ou a técnica de escrever cartas. Já esteve muito em moda. Personalidades que admiramos eram assíduos missivistas. Mário de Andrade, por exemplo, correspondia-se com inúmeros escritores. Não deixava de responder a quem escrevesse a ele.

A correspondência ativa - de quem escreve - e a passiva, de quem responde, já rendeu inúmeros livros. Li e reli as cartas trocadas entre Alceu de Amoroso Lima, cujo pseudônimo na literatura era Tristão de Athayde, e sua filha religiosa.

Hoje, com e-mails - dizem que logo acaba - e WhatsApp, ainda existe quem escreva cartas?

Li com interesse um artigo de Sydney Page, pulicado no Washington Post e reproduzido no Estadão, sob o título "Detetive de Lembranças Perdidas". Narra a aventura de Chelsey Brown, que num "mercado de pulgas" de Manhattan, encontrou uma carta manuscrita e a comprou. Sua intenção era rastrear os descendentes do destinatário da carta. Mediante consulta a sites de genealogia, logrou descobrir familiar a quem ofereceu o achado. Houve entusiástica recepção.

Ela passou a fazer isso. É uma jovem de vinte e oito anos, portanto da geração dos millenials, que poderia não se interessar por velharias. Mas encontrou prazer nessa prática de localizar pessoas para as quais essa correspondência perdida ou esquecida reveste significado.

Foi além. Interessou-se por saber quem era a garota sepultada ao lado do túmulo de sua avó, em Nova Iorque. Conseguiram localizar seus parentes vivos. Eles sabiam que ela morrera, mas não tinham ideia de onde estava enterrada. A partir de então, a garota não estaria mais sozinha. Alguém poderia visitar seu sepulcro e colocar uma flor.

São gestos humanitários que fornecem a quem se dedica a esse hábito uma outra dimensão de tempo. Cartas são pedaços d'alma transcritos em papel. Quem escreve pode estar angustiado, atormentado, quer partilhar a emoção com alguém que merece sua confiança.

Quantos desses retalhos de sentimento ficam perdidos? Quantos são destruídos? Há um lindo poema de Esther de Figueiredo Ferraz, dizendo que suas lembranças, suas relíquias, suas recordações, serão devassadas por aqueles que a sucederem.

Um Brasil com mais celulares e bugigangas eletrônicas do que habitantes, por certo não é mais um país epistolar. Hoje o uso é de recados, sintéticos e abreviados, uma verdadeira onomatopeia. Será que essas mensagens conterão a mesma substância emotiva de uma carta?

Na minha idade provecta, escrevi e recebi muitas cartas. Como sou um ajuntador de coisas, a merecer uma espécie de "intervenção", ao uso dos americanos, não me desfaço de qualquer delas.

Penso que todo esse tesouro afetivo será destruído quando eu partir. Ou haverá uma neta, uma bisneta - ou um neto, um bisneto, para não ser preconceituoso - que se interesse pela correspondência do avô ou bisavô?

Tenho tantas cartas, desde a adolescência, que nunca precisei comprá-las em feiras de antiguidade. Embora frequente essas feirinhas, no Brasil e em todo o mundo. Sempre procurei trazer algo de cada lugar, de preferência com reduzida dimensão, para não tomar espaço na bagagem. E me emociono com objetos antigos, dos quais tenho grande coleção.

A quem pertenceram? Por que se desfizeram deles? Como seria o olhar de seus primitivos donos?

Essa mania de elucubrar também me fez comprar todos os crucifixos que pude. Feria-me ver o crucificado na sarjeta, então eu o adquiria. Outra coleção razoavelmente ampliada, pois as viagens foram muitas. A destinação dela será mais fácil: as irmãzinhas carmelitas saberão cuidar adequadamente Daquele que as recrutou para a vida de recolhimento e oração.

Cartas, pequenos objetos, crucifixos. Vamos adicionando lembranças e imaginando o que pensariam aqueles que as escreveram, que os adquiriram e retiveram, o motivo pelo qual tudo isso veio parar em mãos alheias.

Material de reflexão, para a constatação de que tudo passa, só Deus não passa, como prelecionava Teresa D'Ávila, Doutora da Igreja. Também são pedaços de micro-histórias, essas que passam ao largo dos grandes acontecimentos, das datas a serem celebradas. Mas que motivaram existências de humanos como nós. Que um dia sentiram como nós. E que partiram, como nós também partiremos.


Publicado no Jornal de Jundiaí
Em 06 02 2022



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