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O BARULHO DA PORTA
Acadêmico: Gabriel Chalita
Por que alguém escreveu a história de Caim e Abel? Como foi que a inveja foi nascendo e foi matando?

O sono dá sinais de falência e os incômodos pensamentos assustam minha paz. Viver de passado é o que eu nunca quis. Viver de brigar com o que fiquei sabendo é desconhecer o viver. Mas e quando o passado diz o hoje?

Ouço o barulho da porta. Não sei se é Bernardo ou Joaquim. Meus filhos, embora crescidos, ainda moram aqui. Virgínia dorme ao meu lado sem as perguntas que me impedem dormir. É mãe. É protetora inconfessa das erráticas escolhas. Sou rabiscado por textos diversos que me trazem nada das explicações do existir. Por que são tão diferentes? Criados pelos mesmos pais, com os mesmos afetos, na mesma casa, com as mesmas condições de escreverem o certo.

Joaquim é dissimulado. E isso me dói. Faz das trapaças um trampolim para o sucesso. No pulo vazio, encontra-se até alguma suposta vitória, algum dinheiro, algum imerecido reconhecimento. Leio em seus pensamentos a perversidade de não se preocupar com a dor que causa aos outros. E sei que ele percebe o que percebo. Então,  ri gentilezas e fala inverdades como compensações ao que devo esquecer. Não esqueço. Até porque me culpo por algum descuido dos seus primeiros passos, onde tudo é mais fácil, onde tudo é mais complicado. 

Bernardo é um homem casado com a generosidade. É verdadeiro até nas derrotas. Assume para si a responsabilidade de melhorar o mundo. Abre as portas para que outros entrem na casa necessária das oportunidades. Dá de si sem barulhos, sem publicidades. Apenas ajuda na carpintaria de esculpir felicidades.

Falo não como pai, mas como observador da fascinante ventura de viver atento. Virgínia diz o certo, não se comparam os filhos. O incerto é, entretanto, o nascimento do mal. Ouço em Joaquim o prazer de destruir alguém, a trama que deu certo na inverdade que grudou, nas lágrimas da injustiça que impediram sonos bons. Diz ele que é da sua profissão. Que a vida é uma batalha. Que os fracos devem conviver com as derrotas e não reclamar dos que vencem. Entende nada ele. Lembro-me de Machado que, também, tinha Joaquim como primeiro nome: "Ao vencedor, as batatas".

Bernardo é diferente e é, por isso, vitorioso. Tudo dá certo com ele e a paz que ele bebe nos aproxima cada vez mais. Ontem mesmo, ele narrou uma história de arrancar lágrimas. Sem invenções desnecessárias. A riqueza da vida está nos detalhes verdadeiros da vida. Das vidas que se encontram, que se aquecem. Bernardo fala de amor com os gestos. 

Falam pouco os dois, o que entristece Virgínia. Nas diferenças, as palavras foram encontrando os seus cantos. Joaquim fala muito de si e fala alto e mente conquistas.
Bernardo silenciou, há tempo, os egoísmos e, serenamente, percorre os embates sem se debater em estranhamentos.

Por que alguém escreveu a história de Caim e Abel? Como foi que a inveja foi nascendo e foi matando? Joaquim diz mal do irmão. Vive de memórias construídas. 
Bernardo fala nada de Joaquim. Olha com piedade o atormentado irmão. Um dia justificou a mim o cansaço. Entregou os pontos. "É mais fácil ajudar o mundo do que o próprio irmão?", foi a pergunta da mãe. Ele sorriu silêncios. Já tentou de tudo.

Viro na cama e abraço minha mulher. E acaricio seus cabelos. Amo os dois. Os dois são filhos meus. Sementes que plantei na humanidade. O amor, entretanto, não me retira as lentes da consciência. Em algum momento, errei eu ou alguém errou. Não sei.  Sei que a porta que se abre barulha em mim sons que não controlo. Não sou dono do mundo nem de ninguém nem , ao menos,  dos meus pensamentos que teimam em prosseguir pensando.



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