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ANTES QUE ME ESQUEÇA
Acadêmico: José Renato Nalini
O livro que Bolívar Lamounier acaba de lançar reúne crônicas, contos e outros escritos, elaborados durante a pandemia. O sugestivo título – “Antes que me esqueça” – coincide com a intenção que acalentei há tempos, de fazer algo parecido.

Antes que me esqueça


O livro que Bolívar Lamounier acaba de lançar reúne crônicas, contos e outros escritos, elaborados durante a pandemia. O sugestivo título – “Antes que me esqueça” – coincide com a intenção que acalentei há tempos, de fazer algo parecido. Sob essa rubrica, vou recordando fatos passados, mas Bolívar se antecipou. E fez bem.

Há retalhos de uma infância de mineiro do interior, na singela ingenuidade característica à infância de uma época tranquila, algo que não existe mais. Depois vem a fase adulta, com crônicas e belos contos, como “A bonita história de Brenno e Maria Anita”.

Encontrei-me no divertido “Por favor, descreva a sua mala”. Lembrei-me de que cheguei a Lisboa para um evento no qual falaria no dia seguinte, uma segunda-feira. Só que minha mala foi .. para a África!

O Diretor do CEJ – Centro de Estudos Judiciários, a escola da Magistratura lusa, instalada num antigo presídio, era um cavalheiro: Conselheiro Acácio Leandro. Gentilíssimo, ficou aflito com o transtorno. O inconveniente único foi falar na manhã de segunda-feira sem o imprescindível terno. Era inverno e o comércio só abriria por volta das dez ou onze horas.

Tive de ir comprando, a cada dia, o mínimo para poder me apresentar, até que a valise voltasse, só no fim de semana, quando eu já possuía outro guarda-roupa.

Todavia, não tive o dissabor de minha bagagem ter servido para um traficante embarcar drogas para a Costa do Marfim, fato que Bolívar narra em “Eu e a Costa do Marfim”. Irônico foco na burocracia brasileira está em “A propósito, o senhor já está procurando?”.

O Bolívar ensaísta, que todas as semanas brinda a nacionalidade com lúcida leitura da indigência política tupiniquim, de certa forma surgiu no texto “Do cabrito montês à política brasiliense”.

Acredita que o brasileiro tem algum parentesco com o “Capra Ibex”, o cabrito montês do Velho Continente. E menciona a vida em Brasília: “Os políticos ficam lá se divertindo com a política, às vezes praticando o saudável esporte de xingamento mútuo ou especulando sobre aquelas formas fósseis que designam como esquerda e direita. Não precisam se preocupar muito com a alimentação, uma vez que no Planalto o capim é farto. E, claro, não temem a vertigem de áreas altas, que lá não existem”.

Continua: “Vertigem sentiriam se o pensamento deles se voltasse intensamente para o futuro, perscrutando-o com atenção. Nas raras ocasiões em que lhes ocorre pensar no longo prazo, esfregam os olhos, botam grossos óculos e nada enxergam que lhes deva preocupar. Nada que lhes desvie a atenção das candentes questões da vida brasiliense: quem gravou quem, quem vai acompanhar o presidente em sua próxima viagem ao exterior, que cargos podem tentar obter para parentes. Maravilha! Isso é que é país”.

Parece que fazia eco ao relatório elaborado por algumas entidades que constatam a pouca importância conferida pelos parlamentares à mais desafiadora e grave crise que o planeta enfrenta, o aquecimento global, causador de alterações climáticas presentes e já enfrentadas pelos brasileiros. Penalizando, é óbvio, os mais pobres.

Essa crônica – ou artigo? – é instigante. Bolívar de certa forma contempla a natureza, detendo-se na fauna ofídica brasiliense: “Não precisamos perscrutar o futuro e podemos até esquecer o passado, que por definição já passou. Ocasionalmente se lembram de que, muitas décadas atrás, a natureza brasiliense apenas abrigava umas inofensivas jiboias. Depois apareceram umas jararacas, e um dia – ah, dessa todos se lembram, tenho certeza – um dia apareceu uma enorme sucuri. Um bicho tão grande que até montou um “departamento de operações estruturadas”, uma sessão inteira para gerir suas relações institucionais com o meio político e com as estatais. Mas isso também passou, porque, para escalar as instâncias recursais da Justiça, basta um advogado bem remunerado. A placidez brasiliense só começou de fato a mudar no dia em que um grupo teve a genial ideia de criar o Fundo Partidário. Com o Fundo, Brasília se transformou num rio repleto de piranhas!”

Páginas deliciosas de viagens, casos pitorescos e toda uma parte final dedicada a escritos sobre futebol, cinema e música. Sua devoção pelo Vasco passa pela construção do São Januário em 1927, que passou a ser o maior estádio da América do Sul, e só seria suplantado treze anos depois, quando foi inaugurado o Pacaembu.

É muito gostoso ler o que o Bolívar “causeur”, bem-humorado, autenticamente mineiro, escreveu durante a pandemia. Mais um efeito benéfico de uma desgraça. Não fora esse recolhimento forçado e não teríamos um “Antes que me esqueça”, aperitivo de outros livros que Bolívar Lamounier ainda escreverá. Ele não esgotou sua reserva de experiências e narrativas. Aguardamos, ansiosos, que elas venham a lume.


Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 01.10.2021




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