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UM GATO ACARICIANDO A JANELA
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Gosto de olhar os mist?rios do olhar de Joaquim e de ficar imaginando de onde v?m os gatos.?Tem ele muitas vidas? E eu?"

Joaquim ? o nome que dei a um gato que veio da rua e foi ficando.

Joaquim ? o primeiro nome de Machado de Assis, o escritor que acariciou a alma da humanidade com os seus textos e os seus subtextos, com seus ditos e os seus mist?rios.?

Joaquim, o gato, acaricia a janela, enquanto separo umas roupas para o bazar.?O frio se aproxima, e eu fico incomodado cada vez que penso nos excessos e nas faltas. Tenho tanto e tanta gente tem nada.

Enquanto recolho, ou?o m?sica vinda de algum lugar. Deve ser da casa da Irene, cont?gua ? minha. Ela gosta de revezar ?pera com sil?ncio.?N?o me incomodo.

Na semana passada, fui encerrar o dia tomando ch? em sua elegante mesa. Em sil?ncio, a m?sica nos penetrava. De tempos em tempos, Irene explicava a can??o. Havia algo de arrebatador em seus textos. Era sublime ouvir a sua voz entre vozes que preenchiam o mundo com a m?sica. "Callas canta a dor como ningu?m", explica ela. Callas canta Carmen em uma explos?o de beleza. Irene faz um movimento de devo??o. ? como um ritual sagrado em que o ?xtase disfar?a o cotidiano.?

Tr?s lugares estavam cuidadosamente arrumados. O dela, o meu e um terceiro que, aos poucos, fui sabendo que era destinado a todos os ausentes. Irene n?o gosta das falas diretas. Mostra pouco do que ?. E eu gosto de imaginar os seus mist?rios. As luzes da casa s?o indiretas. Os abajures ? que nos iluminam, na temperatura certa. Em cada canto, uma hist?ria.

Volto para casa e vejo Joaquim. Apago as luzes de cima e ligo um abajur pr?ximo a uma poltrona antiga, heran?a do meu av?.?
Joaquim se preocupa nada com a vida. Mia de pregui?a e percebe os movimentos sem grandes sobressaltos. Lambe o pelo limpando o que o incomoda. Come o que decide do que sirvo a ele. Quando quer, deita nos meus p?s e oferece um afago. Quando quer, vai aos vizinhos examinar a noite. N?o proibo nada. Veio por escolha e ? por escolha que permanece.??

Volto ?s roupas guardadas e ao necess?rio desapego. A m?sica diminui de presen?a. E, ent?o, ou?o um intermitente som de torneira pingando. Vou ao ?nico banheiro da casa e nada. A torneira da cozinha est? fechada. ? a torneira do quintal. Sento ao lado dela e fecho os olhos para diferenciar os sons que incomodam dos sons que arrebatam a alma. Penso em Callas e na hist?ria que ouvi de Irene. Queria eu ter tido o amor de Callas, queria eu ter medicado as suas feridas da alma. A ?gua vai pingando, enquanto Joaquim vem deitar pr?ximo a mim.?

A lua n?o autoriza a escurid?o. E, ent?o, eu vejo as ?rvores que rejeitam os muros descansando na noite. Penso nas minhas imperman?ncias, quando contemplo a gigante figueira que me olha pequeno.

Fecho a torneira. J? poetizei demais os pingos d'agua. ? melhor entrar.? Joaquim entra comigo. E se esfrega tentando espantar pensamentos que possam me entristecer.?Explico a ele que a tristeza faz parte de mim. A infelicidade, n?o. A infelicidade vem de um esp?rito fechado. Vem de lam?rias, de reclamos diante da vida. Isso n?o. Gosto da vida e das suas esta??es.

J? n?o sou t?o mo?o. J? sinto o tempo pesando em mim. J? doem em mim as aus?ncias e as impossibilidades. Mas s?o dores boas. N?o choro os que se foram sem antes agradecer por terem estado. E, se percebo que as roupas j? n?o mais me servem, experimento outras ou at? a nudez exata de quem precisa se enxergar como ?.?

Tive diversos amores. Alternei sobressaltos e prazeres. Autorizei me rabiscarem de descuidos, era medo de solid?o. E desvalorizei algumas poesias que me amanheciam, era imaturidade.?
N?o. J? n?o tenho a idade das culpas. Passei o que passei e fiz as escolhas que fiz com o que sabia, at? ent?o.?Hoje, prossigo sabendo nada.?

Gosto de olhar os mist?rios do olhar de Joaquim e de ficar imaginando de onde v?m os gatos.?Tem ele muitas vidas? E eu?
A minha janela ? diferente de todas as janelas que h?, porque ele a acaricia. Porque vejo todas as ruas do mundo, vendo ele. Quanta estupidez em quem desconfia dos gatos. Desconfio eu dos humanos. Principalmente dos que n?o gostam de m?sica.

Agora ou?o outra ?pera, entrando pela minha janela. N?o sei se ? Callas, mas decido que ?.? A voz combina com o gato que combina com a noite que combina com a minha alma.?

Amanh?, levo as roupas para doar e fico comigo mesmo e com o que ningu?m nunca vai tirar de mim.

Publicado no Jornal O Dia RJ, 25 de abril de 2021.




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