Compartilhe
Tamanho da fonte


UM CÉU PARA ANNA
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Quem a conheceu,  há mais tempo, dizia que os dias ao lado dela eram mais leves. Que ela plantou delicadezas em todos os palcos em que representou com mestria o viver pela palavra."

Eram os dias finais do ano que já se findou quando recebi a notícia. Nesse dia, estava de folga, ajeitando a vida, que deixo de lado, quando estou no hospital.

Sou enfermeira e, no cuidar, descobri o meu lugar no mundo. E foi assim que conheci Anna Maria Martins, a escritora.

O primeiro dizer daquela bela mulher de 96 anos foi, "Minha querida, estou sendo muito bem tratada aqui, agradeço a amabilidade de todos, mas, infelizmente, vou ter que ir embora, compreende?". A filha sorria com o dizer da mãe. As palavras, companheiras de toda uma vida, não aconteciam sem cerimônias. Eram pensadas antes de ganharem vida. 

Acho linda a vida de um escritor e quis saber mais. Um pouco ela mesma me disse, feliz com minha curiosidade. Outro tanto fui pesquisando e me encantando com aquela mulher. O marido era, também, escritor. E, também, a filha. Ela gostava de dirigir a vida, inclusive. Mas me contou que, aos 90, ainda ia interior afora visitar parentes. E gostava da liberdade. E ria dizendo que, vez ou outra, extrapolava os limites da velocidade, "Que minha filha não me ouça!", soletrava brincadeiras. 

Os livros tomavam horas de seus dias. Era ciosa na arte de traduzir, engenhosa na arte de inventar personagens ou de relatar acontecimentos. Os seus pares a tinham como a dama da elegância ou da delicadeza ou da generosidade. Meu Deus, por que demorei tanto para conhecer essa mulher?

Já disse que gosto do cuidar, e esse é o meu manifesto de que não desisti da humanidade. Mas me pego absorvida de horror quando vejo as violências. Há mulheres que chegam ao hospital rabiscadas de um escrito covarde que agride partes do corpo e que diminui a alma. A alma, vocacionada para as grandezas. Brigas tolas que geram ferimentos, por homens armados de ódio. No trânsito. Na vizinhança. No bar. 

Há outras provas da violência onde trabalho. Os abandonados. Os que melhorariam mais rapidamente se tivessem o amor dos seus. Essas imagens sempre me visitaram. E me entristeceram. E, jamais, me desanimaram. 

Meu ânimo hoje é outro. A tristeza da despedida de Anna e a certeza de que o que ela falou era mais profundo do que ir para casa. "Agradeço a amabilidade de todos, mas, infelizmente, vou ter que ir embora".

Ela foi embora. Infelizmente, ela foi embora. Embora tenha ido feliz. Não que a vida não a tivesse ferido, mas tinha ela, na gentileza, o poder cicatrizante dos dias.
Quem a conheceu,  há mais tempo, dizia que os dias ao lado dela eram mais leves. Que ela plantou delicadezas em todos os palcos em que representou com mestria o viver pela palavra.

"Sou uma escritora", dizia ela, "Sou da literatura, sou das histórias bem contadas, dos laços que unem vidas e que proporcionam felicidades".

Decidi que vou ler mais em gratidão aos poucos dias em que pude ouvir a sonoridade da sua voz dizendo belezas.
Fico imaginando como deve ser um céu para Anna. Terá ela um clube de leituras para explicar o amor, a amizade, a bondade? Terá ela outros escritores para inspirar os dias? Terá ela alguma enfermeira como eu para acariciar a alma cuidando e sendo cuidada?

Sou uma mulher de fé. E isso me basta para dizer que não sei como é a vida depois que a vida se despede. Só sei que não pode ser ruim para quem foi bom. 
Anna, ainda nos encontraremos...

Publicada no Jornal O Dia RJ no dia 17 de janeiro de 2021.



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.