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SÚBITO AMOR
Acadêmico: Gabriel Chalita
É que o tempo, meu professor e quase sempre amigo, me ensinou que não se desperdiça um olhar único na multidão de olhos que nada dizem.

Ela ia atravessar a rua. O sinal determinou a espera. E foi, nesse intervalo, que nos olhamos.

Eu estava sentado, bebendo a saudade.

O dia não me prometia nada além do que os dias que se passaram me deram. Aos 85 anos, o que espera um homem?

Enviuvei depois de ter cuidado da dor de Josefina até o último instante. Ela se foi, em um desses dias, em que o mundo fecha as portas e nada mais tem sentido.

Conto como nos conhecemos. Sou pedreiro de profissão. E jogava futebol como um artista. Até me profissionalizei por algum tempo, mas faltou perseverança. Era um domingo. Eu saía de um treino e Josefina saía da Igreja. Eu suado, e ela pura. Eu descuidado, e ela santa. E nos trombamos. A mãe que a acompanhava me conhecia. E gostava de mim. Eu era bom e medroso.

Os meus medos eram medos de um homem que teimava em não amadurecer. Tinha medo de não ser amado, medo de não dar certo na vida, medo de não ter dinheiro, medo de tentar e fracassar. Por isso fui deixando o futebol e levantando paredes. E gostei de ser pedreiro. É bom ver as mãos construindo espaços onde o amor vai morar. E abrindo janelas para a luz que nos mostra que acertamos.

Depois de conhecer Josefina, prossegui com medo. Um medo mais belo. O medo de não fazer a mulher que eu tanto amava feliz. O medo de que nossos filhos não tivessem neles plantados a semente da bondade. O medo de que o mundo fosse ficando injusto e sem compaixão. Fui compreendendo, assim, o amor. O desprendimento. A responsabilidade.

Deixei de ser eu para ser o mundo inteiro que me rodeava. E, então, comecei a ser mais eu. O amor de um pedreiro simples por uma mulher descida do alto para preencher de beleza a vida. E foi ela linda até os últimos dias. Quando seus olhos se fecharam, eu olhei para mim e não mais me vi. Nossos filhos têm os seus filhos e as suas construções. A solidão veio morar comigo na casa simples que eu mesmo construí. Construí para ela. Chorei o choro do homem diante da despedida. Cada espaço tinha ela, e ela já era inteira um espaço de luz. Voltou ao céu, a santa que aspergiu de alegria a minha vida.

Alguns anos se passaram. E, então, se deu um outro encontro. Enquanto Eva esperava o sinal abrir, abriu em mim uma emoção diferente. Eu disse algo como um comentário sobre a beleza do dia. E ela sorriu. Eu a convidei para que sentasse comigo e se refrescasse ouvindo a minha história. Ela não disse 'não'. E, depois de algum encontro de pensamentos, eu fui ao que considerei o certo, convidei Eva para vivermos juntos.

Era ela, também, viúva, há mais tempo do que eu. Também com os filhos entregues aos mundo. O sinal aberto nos viu atravessando o medo da surpresa de mãos dadas. Súbito, Josefina apareceu em mim. Não para censurar. Emprestou o sorriso das que prosseguem amando. E cuidando. Com ela, o amanhecer nos prometia um dia longo.

O entardecer, ao lado de Eva, é diferente. Mas é também amor. Não que eu seja apressado. É que o tempo, meu professor e quase sempre amigo, me ensinou que não se desperdiça um olhar único na multidão de olhos que nada dizem.

Publicado no dia 04 de Outubro, no jornal O Dia (RJ).



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