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MEMÓRIAS DO SUBSOLO
Acadêmico: Luiz Carlos Lisboa
O monólogo da perplexidade humana em face do mistério da vida. Uma abordagem do livro de Fiódor Dostoiévski por Luiz Carlos Lisboa*, para o Clube de Leitura da Academia Paulista de Letras.

A novela Memórias do subsolo foi toda escrita em Moscou entre janeiro e maio de 1864, enquanto um pesado inverno caía sobre a cidade e a mulher do escritor morria no aposento ao lado, vencida pela tuberculose. A obra é o monólogo de um aposentado sem nome, na aparência só voltado para si mesmo, mas na verdade aberto ao estar no mundo, isto é, ao mistério da existência humana.
Na primeira parte do livro ele duvida das certezas e parece disfarçar sua ansiedade ante todas possibilidades e alternativas. Na parte que se segue, o livro mostra os encontros e desencontros do personagem, assim como o que está por trás dos seus interesses e até da sua própria crueldade. O modo como o herói desmonta os raciocínios que acabou de construir, e em seguida os refaz para novamente duvidar deles, é um desafio para o leitor curioso. Jorge Luís Borges disse uma vez que a simples leitura atenta de Memórias do subsolo mudou sua maneira de olhar o mundo. “Quando li Memórias”, ele confessou, “senti que havia perdido minha inocência a respeito da vida”.


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*Luiz Carlos Lisboa é jornalista e escritor. É autor de “O jejum do coração” (Peônia Press), entre outros. Ocupa a cadeira nº 6 da Academia Paulista de Letras.
Um outro grande autor, o americano William Faulkner, escreveu que o russo “é como o vagalume que ilumina muito pouco quando pisca, mas com a sua pequena luz podemos ver de quanta escuridão está cercado o ser humano”.
Memórias do subsolo, traduzido também em português como “Notas do subterrâneo”, é o menor de todos os livros de Dostoiévski. Mas suas páginas carregadas de meditação profunda sobre o homem, fizeram dele um dos maiores livros da literatura mundial dos últimos dois séculos. Não é exagero dizer que uma viagem pela obra desse espantoso escritor, equivale a uma jornada moral, psicológica e filosófica.
Memórias do subsolo pode ser visto como a meditação de um observador ávido pela realidade e pelo significado da vida humana. A visão religiosa do livro assenta na mística ortodoxa grega e russa, que entende a conversão como fenômeno que ocorre no eterno presente, não ao longo da vida ou ao fim desta. A obra pode ser percebida como um tratado das dúvidas, mentiras e esperanças que inquietam os que se atrevem a pensar um pouco além das banalidades do cotidiano, ou das crenças que o medo fabrica.
A obra é tecida de falsas aproximações com o real, as quais escapam à nossa compreensão num parágrafo, para logo nos iluminarem no seguinte. Mas Dostoiévski é interessado demais no mistério humano, para nos deixar a meio caminho da realidade: a segunda parte do livro revela o filósofo que refaz a pergunta, e que de novo acende a chama da curiosidade em nós. Ele ri da pretensão humana de saber tudo, e logo nos enche de novo a alma com essa esperança. Seu herói sem nome é belo e assustador, ao mesmo tempo. Por isso, nunca sabemos ao certo se ele nos conforta ou nos desafia.
Poucos críticos, talvez, olharam tão fundo no coração de um autor quanto Mikhail Bakhtin, que quando da publicação do seu livro Problemas da poética de Dostoiévski, já estava preso na União Soviética, por suas opiniões. Nesse estudo, o teórico da linguagem diz que “Memórias do subsolo se fez sobre uma confissão elaborada na expectativa da palavra do outro”. Para ele somos quase nada, mas sem dúvida somos tudo aquilo que ele chama de polifonia, e que Dostoiévski mostra tão bem nos seus romances, especialmente neste Memórias, no “concerto das vozes polifônicas que são independentes da voz do autor”.
Mas do que trata, afinal, o livro? Esta novela em duas partes é construída sobre uma confissão que rasteja como uma serpente entre conceitos e opiniões, argumentos e análises. Seus elementos se destroem mutuamente, à medida que são examinados ou relidos. Sua leitura é tudo, menos monótona. Se o leitor mantém a atenção, é recompensado pelas descobertas que faz. A primeira parte do livro consiste em onze pequenos capítulos.
O herói é um ser magoado pela vida, alguém que se esconde em seu “buraco de rato”, mas que ainda tem sonhos de grandeza. Ele nos contagia da sua indignação para em seguida desmontar os argumentos que usou para isso, e se acaso nos faz rir ele convoca em nós a seriedade como algo indispensável. Brinca, em verdade, com as nossas reações e sentimentos, esvazia as nossas esperanças e logo constrói castelos com palavras em torno da imprecisão dolorosa das coisas. Seu alvo mais constante é o racionalismo, e sua única certeza é a dúvida. O homem do subsolo conhece a arte cruel e sofisticada de tirar o tapete de sob nossos pés, e faz isso de um modo tão especial que nos agrada.
O narrador sem nome é um funcionário público aposentado que deseja a atenção do leitor, para lentamente deixá-lo em dúvida. Quando abala os pilares a que nos agarramos com as nossas certezas, parece impiedoso. Logo em seguida, descobrimos que nos salvou de uma ilusão. O fato é que o autor-personagem, por sua arte admirável, mantém nossos olhos fixos nele. Tudo na sua narrativa é convincente, e ao mesmo tempo é pura metáfora, como na menção ao Palácio de Cristal, a sociedade socialista perfeita que sempre morou no sonho dos russos, e afinal nunca passou de um desejo.
A segunda parte de Memórias é duas vezes mais longa do que a primeira, e há nela três episódios que revelam o desconforto do herói entre os seus semelhantes. Com o subtítulo “A propósito da neve molhada”, sua narrativa inclui um longo diálogo com Lisa, uma jovem prostituta de Riga, contra quem o sombrio personagem revela seu lado mais cruel. A certa altura, ele se volta à evocação dos seus 40 anos, da primeira parte do livro, para provar que no mundo todos vivem suas vidas baseados em ficções.
Na Rússia do tempo do autor, segunda metade do século XIX, o livro foi recebido com frieza pelo leitor comum, embora para alguns soasse como escrito pelo maior filósofo da época, Nietzsche. No entanto, quem explicou melhor a fraca aceitação inicial de Memórias do subsolo foi o tradutor brasileiro de Dostoiévski, Bóris Schnaiderman, que lembrou num dos seus notáveis prefácios que “os contemporâneos muitas vezes são os piores intérpretes de uma obra”. O extraordinário nisso é o fato de os personagens de Dostoiévski estarem confortavelmente identificados com nossa época onde floresceram as ideologias marxistas, o avanço do imperialismo e o liberalismo econômico.
Em Memórias fica bem clara a tensão entre o homem profundo aquele que tenta entender a realidade a partir do percebimento das próprias contradições e a grande maioria dos demais, que agarrados a certezas e condicionamentos, desesperam em meio à verbalização e à busca de argumentos. Ainda assim, por sua natureza o homem profundo e rempli de soi mème é contraditado pela realidade a cada momento, traído pelas suas contradições e desejos.
Quanto mais ao fundo de si ele vai, tanto mais agoniado se sente. Em Memórias do subsolo isso se mostra em cada página, e por toda a narrativa paira a mensagem vaga de que todo pensar humano é feito apenas de sonhos e de impressões. Para o anti-herói de Dostoiévski o homem só faz coisas más porque não compreende sua própria alma.
A oposição entre o homem subsolo e o homem de ação deve ser entendida para que o livro faça sentido ou ele será só um rosário de queixas, de amargor e revolta. O filósofo e crítico Luiz Felipe Pondé, no seu Crítica e Profecia, a Filosofia da Religião em Dostoiévski, chama os heróis do subsolo de “agoniados, por conta do exercício da razão levado ao paroxismo”, e lembra que o ser humano em geral ou é objeto da religião ou não é nada, sendo apenas pura circularidade.
Mas Dostoiévski foi, no seu íntimo, apaixonado e impetuoso, lendo em voz alta cartas e manifestos radicais que o identificavam com niilistas, materialistas e todos os demolidores do momento. Isso custou ao escritor uma dura experiência por volta dos seus trinta anos. Em 23 de abril de 1849 ele foi preso e levado à fortaleza de São Pedro e São Paulo, na margem do rio Neva que corta São Petersburgo. Ao fim daquele ano foi condenado à morte e enfrentou um pelotão de fuzilamento, pena suspensa no último momento para ser levado a cumprir quatro anos na Sibéria.
Proibido de ler e escrever no degredo siberiano, Dostoiévski conservou sempre consigo o velho exemplar de um evangelho cristão, que decorava e em cujas páginas fazia anotações. Por sorte da humanidade, porém, ele nunca foi homem de um livro só, tendo ao longo da vida conhecido muito da alma humana no contato com Platão, com os clássicos gregos, com Santo Agostinho e Shakespeare, entre outros.
Em seu agudo ensaio sobre o russo, Pondé nota com peculiar profundidade que a observação dos outros presos carregando areia de um lado para o outro na penitenciária siberiana, ajudou Dostoiévski a acreditar que a condição humana não tem sentido ou pelo menos não faz sentido para nossos olhos humanos. Ao mito grego do esforço baldado juntava-se a promessa cristã de que pelo sofrimento o indivíduo se transfigura, sendo o niilismo apenas a negação da esperança.
A voz sem nome de Memórias do subsolo, que argumenta e deblatera mas faz pensar a quem a escuta, que polemiza e em seguida revê suas razões, é a do homem do subsolo, aquele que desafia a própria razão, que desconfia da rigidez das próprias certezas, e procura sem cessar, talvez até morrer.
No final do exílio siberiano o escritor conseguiu os livros que queria, e esse foi seu grande começo: o Corão, Vico, Kant e Hegel. E descobriu que o interesse religioso era uma sede quase nunca saciada, e que às vezes a busca é o próprio fim do caminho, que nós não percebemos. Em Dostoiévski foi sua formação filosófica que fez dele o autor de Os Irmãos Karamázov, sua vasta e maior obra, e mais essa pequena joia que é Memórias do subsolo.
O segredo da imensa força narrativa do autor é explicado pelo filósofo, pensador e linguista Mikhail Bakhtin, que em Estética da criação verbal defendeu a ideia do filósofo Heidegger segundo a qual “é a própria existência que fala pela boca do escritor”.
Com rara sensibilidade, em Problemas da Poética de Dostoiévski, publicado em 1963, Bakhtin demonstra que em várias de suas obras, o escritor russo não se inspira em ideias petrificadas mas discute com seus personagens e reforça os argumentos dos que se opõem a seus heróis, criando um verdadeiro romance de ideias e dando vitalidade a uns e outros, sem particularizar ou se identificar, mantendo sempre o mesmo vigor crítico. Por isso é difícil dizer qual das duas partes de Memórias do subsolo é a mais apaixonante para quem segue seus volteios, sua indignação e sua esgrima verbal aparentemente infinita.

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