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SOMOS TODOS ESAÚ E JACÓ
Acadêmico: Luiz Carlos Lisboa
"Nos últimos trabalhos que burilou, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, Machado atreveu-se a mostrar o ser humano em toda sua profundidade, no seu vigor e na sua inconstância."


A lenda bíblica sobre gêmeos muito parecidos embora infinitamente desiguais em questões de gosto e caráter, inspirou Machado de Assis no penúltimo romance que escreveu, Esaú e Jacó. Essa era uma história que ele queria há muito tempo contar, e que foi deixando para depois devido às atribulações da doença que lhe tirava o ânimo, embora lhe permitisse manter a lucidez. Sente-se nessa obra a marcação teatral de que o autor foi sempre um devoto, tendo frequentado muito os teatros apesar do temor de ter uma de suas crises epilépticas em público. Esse senhor absoluto da arte de contar histórias e de esculpir personagens inesquecíveis era fascinado com a diversidade e as aparentes ironias que envolvem a condição humana. Sua variada paixão de escritor, filósofo e psicólogo contrapôs-se, em rara e preciosa combinação, à serenidade que se busca no magistrado e no diplomata. Nos últimos trabalhos que burilou, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, Machado atreveu-se a mostrar o ser humano em toda sua profundidade, no seu vigor e na sua inconstância. Aquele seria o seu Ecce Homo, sem o lavar de mãos de Pilatos ou a disciplina filosófica de Nietzsche.
Para isso, ele não só pôs em ação um grupo para atuar num cenário, como desenhou a alma dos seus figurantes, copiados da vida e contraditórios como os homens e mulheres que conheceu em sua vida e na literatura do mundo. No capítulo quinto de Esaú e Jacó ele diz como os tratou, ligado somente à verdade dos fatos: “Não me peças a causa de tanto encolhimento no anúncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Há contradições explicáveis. Um bom autor que inventasse a sua história ou prezasse a lógica aparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, sei bem como as coisas se passaram, e as refiro tais e quais”. O gosto do autor pela análise leva o Conselheiro Aires quase uma encarnação do autor nos seus dois derradeiros romances a enriquecer de realismo um estilo que na literatura de então já estava em agonia. Tratava-se então de revelar a humanidade desses gêmeos Paulo e Pedro, como de fato eles seriam feitos se humanos fossem. Algo quase à altura do Gênesis bíblico no plano literário. Aires é Machado, quando ele se confessa, inclusive quando mostra que nossos iguais são aqueles com quem mais antipatizamos. Os gêmeos da história são o homem no espelho, a dura verdade sem os bons modos da sociabilidade. Estão ali os nossos defeitos que abominamos nos outros para nos poupar um pouco. Por isso, é mais fácil aceitar o diferente do que o igual ou o parecido.
O desfecho da história em Esaú e Jacó é lento e pormenorizado, às vezes difícil de ultrapassar para quem não fez ainda esse confronto. É algo associado ao sacramento da Confissão, também alguma coisa da Psicanálise. Mas Machado na voz de Aires, como sempre, repete sua denúncia, belo e cruel, sereno e maravilhoso, de bisturi em punho, elegante como o personagem que ele mostrou com eloquência nos derradeiros livros de sua vida. Assim que ele diz, no seu capítulo 11 do primeiro: “Perdoa estas minúcias. A ação podia ir sem elas. Mas eu quero que saibas que casa era, e que rua e, mais digo que ali havia uma espécie de clube...” A paixão machadiana por teatro multiplica no livro a conversação familiar da época, eterna e presente quando já não há baronesas, nem tílburis, nem as síncopes de conversação. O Conselheiro Aires é por inteiro Machado de Assis (ou o que dizem dele seus contemporâneos). É equilibrado, cordato, bom ouvinte. No capítulo 48, o magistral ilusionista fala de si: “Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso pôr aqui integralmente, com as suas virtudes e imperfeições, se as têm”.
Pedro e Paulo mostram bem como somos nós, a gente de todas as épocas. Nós e nossos propósitos nunca levados a sério, nossos políticos, os pré e os pós revolucionários. Os irmãos se reconciliam em face da morte de um terceiro amado, mas logo voltam à antiga dissidência, porque odiar é o mais velho dos vícios e comparar o mais antigo dos hábitos. E assim vão até a maturidade quando ambos alternam posições mantendo a coerência da dúvida e os cuidados do medo em suas relações. Afinal, Pedro e Paulo, correndo lado a lado, mas um contra o outro, fazem-se deputados eleitos por partidos opostos, naturalmente. Então, é ainda Aires quem ajeita as coisas, evocando o que é talvez o mais surrado assunto da contraposição amor e ódio, dramático e doloroso como a Odisseia de Homero. Pedro é astuto como Ulisses, Paulo é colérico como Aquiles. As classificações mais recentes, como as que dividem os humanos entre conservadores e revolucionários, parecem pobres e anacrônicas em face dessa outra, mostrada sempre com graça e perfeição na obra de Machado de Assis, um trabalho de arte a ser sempre revisitado.

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Luiz Carlos Lisboa, jornalista e escritor, ocupa a cadeira de n° 6 da Academia Paulista de Letras. É autor de “O Jejum do Coração” (Peônia Press) entre outros.




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