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ALÉM DA LINHA DO HORIZONTE
Acadêmico: Bolívar Lamounier
"É duro reconhecer isso, mas somos de fato um país de duas justiças, a dos poderosos e a da raia-miúda. Estamos, pois, nas mãos do Procurador Geral, do STF e do Senado. E das ruas."



“Durante anos, puseram-se a fitar a superfície do mar. Aí resolveram atirar-se à sua última ousadia: ir aos confins do mundo, para ver o abismo. Partiram em viagem, num barco muito pequeno. Entendiam como um sinal de esperança o fato de as aves marinhas seguirem o barco até mar alto”. (Werner Herzog, cena final do filme Coração de Cristal).

Como densas nuvens, três pesadas indagações pairam sobre nosso país. Primeiro, como vamos nos livrar do emaranhado de corrupção que quase destruiu a maior empresa estatal e solapa diariamente a legitimidade do sistema político democrático? Segundo, como compreender com um grau razoável de consenso o que aconteceu: como foi possível um país dotado de instituições superiores à média dos “emergentes” e preparado pela gestão FH para retomar o crescimento se desnortear nesse grau, desperdiçando dessa forma um tempo de que não dispomos? Terceiro, econômica e socialmente, quais são nossas alternativas de médio prazo? Vamos seguir enxugando gelo ou vamos encetar uma caminhada firme no sentido do desenvolvimento?
Quanto à primeira indagação, é inútil tapar o sol com a peneira. O país está com as vísceras à mostra. E a solução está sobre a mesa: é a Operação Lava-Jato. O problema, evidentemente, é que sob a mesa há interesses e mais interesses empenhados em solapá-la. É duro reconhecer isso, mas somos de fato um país de duas justiças, a dos poderosos e a da raia-miúda. Estamos, pois, nas mãos do Procurador Geral, do STF e do Senado. E das ruas.
Como foi possível que isso acontecesse? A evidência da era Lula-Dilma não comporta dúvidas. Fomos pegos no contrapé por uma organização criminosa disfarçada de partido. Após 21 anos de governos militares, o retorno ao regime civil deu-se num contexto de aguda debilitação do sistema político. Os militares perderam o pouco que detinham de legitimidade, mas sua prolongada permanência enfraqueceu o centro quero dizer, as principais lideranças da oposição, quase todas oriundas do pré-1964-, deixando-o exposto à predação encarnada no PT e na meia dúzia de grupelhos por ele satelitizados. Insaciáveis, esses logo se organizaram para tomar de assalto o sistema político e levar a cabo o que chamavam de “projeto de poder”.
Não fossem as ilusões que à época também predominavam nos setores sinceramente democráticos, teríamos entendido que essa expressão era praticamente uma senha: tratava-se evidentemente da nefasta ideia de uma dominação esquerdista de longo prazo, projeto praticamente incompatível com a alternância de poder e com os critérios normais do regime democrático. No núcleo de tudo isso encontrava-se naturalmente Lula corporificação imbatível de certo populismo verboso. Ninguém o descreveu melhor que Lúcia Hipólito, quando escreveu que ele “mantém uma relação cerimoniosa com a verdade”. Realmente, foi acobertado por uma espessa bruma de cerimônia que Lula pôs-se a angariar os recursos de que necessitava para comprar apoios partidários, eleitorais, congressuais e empresariais, ultrapassando por larga margem tudo o que de pior o Brasil registrara em seu passado histórico.
A partir de 2010, com o enigma já quase todo decifrado, milhões de brasileiros - entre os quais uma grande parcela da própria classe média, que, por ser mais informada, tinha a obrigação de acordar mais cedo - permaneceram como que anestesiados pelo pseudo-“progressismo” do ex-operário. Continuaram a cultuar a grotesca noção de política social que ele pôs em prática durante seus dois mandatos e legou como “programa” à Sra. Dra. Dilma Rousseff: “Ah, é verdade, Lula cometeu ‘erros’, mas nele não se pode tocar, fez muita coisa boa pelos pobres’. Além da mega-corrupção a que antes me referi, essa percepção leniente do populismo é o que está continua travando a superação da angustiante agenda que os 13 anos de lulopetismo nos legaram. O resto é conversa fiada.
E no médio prazo, para onde iremos? Vamos seguir acreditando num patrimonialismo “do bem” ou vamos decepar de vez a cabeça do Estado-camarão? Será necessário desenhar que o Brasil não tem um sistema educacional digno do nome a esse respeito bastando lembrar que nos referidos treze anos e meio o Ministério da Educação foi ocupado por sumidades como Aloísio Mercadante, Renato Janine Ribeiro e Cid Gomes? Que a federação generosamente concebida pelos constituintes de 1988 está em frangalhos? Que o nível de qualificação de pelo menos 80% de nossa mão-de-obra é simplesmente lamentável?
Nos anos cinquenta, poucos países abraçaram com igual paixão o modelo nacional-desenvolvimentista de crescimento, quero dizer, a concepção antiliberal baseada no protecionismo e na substituição de importações. Nos convencemos de que as maravilhas do desenvolvimento estavam ao alcance da mão, contanto que nos dedicássemos com afinco à industrialização de má qualidade que tal modelo implicava. Educação, ciência e tecnologia, formação de capital humano, essas coisas menores, depois se encaixariam.
Escusado dizer que a distância entre aquelas antigas aspirações e a realidade atual se mede em anos-luz. Mas o pior nem é a distância em si, é que, no fundo, ainda acreditamos no modelo. Continuamos convencidos de que, desentocado o caminho, retomaremos o desenvolvimento, que trará mais desenvolvimento etc etc. Estamos num equilíbrio ruim, mas isso é momentâneo, logo estaremos num melhor.
Não nos passa pela cabeça de que o péssimo equilíbrio em que nos encontramos possa estar paulatinamente resvalando para outro ainda pior, com mais desacertos, mais corrupção, mais criminalidade e por aí afora.
Afinal, as aves marinhas nos acompanham até lá fora, no mar alto




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