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UM BOM POVO E UMA ELITE MUITO RUIM: REVISITANDO UM PENSAMENTO DE SANTIAGO DANTAS
Acadêmico: Bolívar Lamounier
Por que terá Santiago Dantas considerado a elite brasileira inferior “como elite” ao povo “como povo” , questiona o acadêmico em seu artigo.

UM BOM POVO E UMA ELITE MUITO RUIM:
REVISITANDO UM PENSAMENTO DE SANTIAGO DANTAS


Santiago Dantas foi um dos mais destacados juristas e políticos brasileiros do período pré-64. Confesso-me um profundo admirador de sua trajetória e de seus escritos. Mas sempre impliquei com uma frase atribuída a ele, a de que “o povo brasileiro como povo é melhor que a elite como elite”. Além de não gostar dessa dicotomia elite X povo, não vejo muita clareza na afirmação. Ainda assim, na expectativa de esclarecer algumas questões importantes a respeito da formação da democracia no Brasil, motivei-me a revisitá-la e refletir sobre ela.
A cantilena de que “o povo não sabe votar” é uma constante nas discussões políticas brasileiras; quase sempre traz embutida a avaliação de que a democracia não pode funcionar num país majoritariamente constituído por semianalfabetos. Como corolário, a ideia de que só poderemos aspirar a um regime de liberdade e convívio político civilizado daqui a centenas de anos, quando todos os eleitores tiverem atingido um nível educacional elevado.
Pelo menos três razões levam-me a divergir da ideia resumida no parágrafo anterior. Primeiro, se só após um dilatado período poderemos estabelecer a democracia como o padrão fundamental de legitimidade política, segue-se que durante tal período o padrão haverá de ser um regime militar (pouco importando se seu titular ostensivo é um civil ou um militar). Segundo, a suposição de que um nível alto de escolaridade confere ao eleitor médio a desejada “sabedoria”. Terceiro, que tal sabedoria constitua uma pré-condição para a instauração e o bom funcionamento da democracia representativa.
Começo pelo sedução do golpe militar. A fantasia de uma ditadura “benigna” - de um ditador enérgico, mas sábio e equânime-, é talvez a maior entre as muitas bobagens que soem aparecer durante crises agudas, como a atual. Uma tentativa de intervenção militar pode atingir seu objetivo ou não; e entre as que o atingem, é difícil encontrar um caso que os cidadãos continuem a considerar benigno depois de uns poucos anos.
Segundo, “saber votar” significa possuir um nível “X” de escolaridade? Um tipo “Y” de ‘sabedoria”? Basta um minuto de reflexão para concluirmos que um nível alto de escolaridade não assegura o nível de “sabedoria” que o bom cidadão democrático supostamente deveria possuir. Há uma correlação entre ambos, mas não uma determinação total; ou seja, o primeiro não determina totalmente o segundo. Nossos entendimentos quanto ao que seja tal “sabedoria” variam muito de uma pessoa a outra; não por acaso, todos às vezes nos impacientamos ao constatar que certos indivíduos de alta escolaridade não pensam como a nosso ver deveriam pensar.
Examinada com atenção, essa concepção do eleitor ideal que “deveria” existir, mas não existe, nem aqui nem na Conchinchina, parece-me decorrer de um processo psicológico raramente admitido pelos que a sustentam. Falo de uma ansiedade, um desejo ardente de voltar as costas ao mundo real da política, esperando pacientemente o advento de um reino, como está na Bíblia, “que não é deste mundo”. Refiro-me aqui a uma dificuldade em reconhecer que o mundo político não é exatamente um chá das cinco; é um mundo áspero, pautado muito mais por disputas de poder e interesse que por embates de ideias. Muitos, quem sabe a maioria dos cidadãos sonham com o bônus de viver na sociedade civilizada, mas sem o ônus de participar ou sequer de observar a malha desagradável de que por toda parte a atividade política se reveste.
A terceira observação que desejava fazer é que a sabedoria individual - de todos ou da maioria dos cidadãos - NÃO é um pressuposto do processo eleitoral; e esta, observe-se, é a questão em jogo, uma vez que o mecanismo eleitoral é o veículo da soberania popular, fundamento sine qua non da democracia representativa. No processo pelo qual a soberania popular se expressa, o que importa é a existência de INCERTEZA na produção do total dos votos; dito com simplicidade, importa que nenhum dos contendores seja capaz de determinar cabal e regularmente o desfecho de sucessivas eleição.
Claro, num país hipotético onde quase todos os eleitores estejam submetidos a algum tipo de “voto de cabresto” haverá uma oligarquia formada pelos donos dos cabrestos, não uma democracia. Nas primeiras décadas do século passado, o Brasil era quase isso; em todos os estados menos o Rio Grande do Sul, havia um regime de partido único (os partidos Republicanos estaduais), capazes de forçar 70% ou mais dos eleitores a votar segundo seus desejos. Mas a oligarquia que controlava os eleitores de um estado não conseguia controlar os de outro; assim, uma fresta de incerteza forçava as oligarquias estaduais a negociarem a sucessão no plano nacional. Penso, aliás, que o programa Bolsa Família foi maliciosamente concebido para tornar pouco competitivo o processo eleitoral brasileiro, assegurando dessa forma uma dominação contínua do PT sobre uma longa série de pleitos.
Voltando à questão educacional, é importante frisar que, em todos os países regidos por instituições democráticas, sejam eles educacionalmente desenvolvidos ou subdesenvolvidos, existem desníveis enormes entre os cidadãos na compreensão das questões públicas e dos processos políticos. Apesar disso, a incerteza existe em razão de fatores regionais, dos atrativos das diferentes personalidades ou plataformas partidárias e, naturalmente, das diferentes situações que se apresentam ao longo do tempo.
Os pontos acima expostos devem ser suficientes para demonstrar quão descabido chega a ser o questionamento das instituições democráticas com base na suposta ignorância dos eleitores. O mesmo “povo” ignorante que votou em Lula em 2002 e 2006 e em Dilma em 2010 e 2014 elegeu Fernando Henrique Cardoso contra Lula em duas ocasiões (1994 e 1995), ambas no primeiro turno.
Fernando Henrique personificou a estabilidade econômica: o fim da inflação que havia décadas angustiava a sociedade. Lula, em parte pela figura popularesca que encarna e em parte muito maior pela criação de programas sociais de índole paternalista, personificou a não menos ansiada implantação de programas sociais de caráter redistributivo. Em ambos os casos, o fator predominante foi, portanto, um interesse econômico imediato, não a ideologia. A diferença é que a estabilização iniciada em 1994 foi concebida como pré-condição para um processo sustentável de crescimento, dentro de uma visão racional, ao passo que as políticas sociais de Lula obedeceram a uma concepção manifestamente eleitoreira: um coronelismo aggiornatto, de larga escala, estatal no que tocava à origem dos recursos e partidário no que se referia à implementação.
E a “elite”? Por que terá Santiago Dantas considerado a elite brasileira inferior “como elite” ao povo “como povo”? Esta interrogação comporta muitas possibilidades de resposta. Permitam-me examinar três delas: a questão da alternância pacífica no poder; a largueza de vistas, indispensável a quem se propõe gerir a máquina do Estado no sentido do bem coletivo, e uma efetiva disposição a defender as instituições, aceitando sinceramente as estipulações constitucionais e deixando de lado as tentações da malícia e da trapaça.
De fato, a possibilidade da alternância pacífica no poder é tão fundamental à democracia quanto a incerteza do voto, na qual se consubstancia a ideia da soberania popular. Historicamente, a alternância é uma conquista recente: só se configurou com clareza em meados do século 19, nos Estados Unidos.
A alternância implica a aceitação pelos grupos ou partidos contendores de duas condições fundamentais:
1. a acima citada soberania popular, isto é, o voto como o único caminho legítimo para o poder: “the only game in town”, na linda frase de meu guru Juan J. Linz;
2. o veredito das urnas, quer dizer, os números finais, uma vez admitido que o processo eleitoral como um todo haja sido conduzido com a devida lisura.
Se as ressalvas de Santiago Dantas às elites brasileiras deveram-se à não aceitação ou a uma aceitação insincera das condições acima, certamente lhe assistiam carradas de razão. Não há dúvida de que a desconfiança mútua entre os diversos setores políticos, em particular entre getulistas e antigetulistas, foi letal para o regime democrático instituído pela Constituição de 1946.
Em segundo lugar, o que sugiro denominar “largueza de vistas”. Historicamente, é fato que as elites brasileiras têm deixado a desejar neste quesito. Agiram, no mais das vezes, de uma forma imediatista, eleitoreira e, como atualmente se constata sem margem para dúvida, abominavelmente corrupta. Tivessem elas demonstrado um pouco mais de tirocínio, nossos índices educacionais não seriam a chaga vergonhosa com a qual ainda hoje somos forçados a conviver. Faltou-lhes, de modo geral, a visão de que desenvolver econômica e socialmente um país é uma tarefa complexa, cujos frutos não amadurecem da noite para o dia.
O currículo das elites econômicas e aqui me refiro às empresas de grande porte - é também lamentável. É certo que o Estado brasileiro, impregnado até a medula pelo patrimonialismo e pela corrupção, jamais admitiu um setor privado forte; de uma ponta à outra do espectro ideológico, todos os projetos de crescimento conceberam a empresa privada como um ator coadjuvante. A história remonta à Conferência das Classes Produtoras de 1903, realizada em Belo Horizonte e ao Convênio de Taubaté, de 1906, marcos iniciais do que três quartos de século mais tarde Delfim Netto descreveria como uma arraigada tendência a “mamar nas tetas do governo”.
Da mamação passou-se ao estupro, como o inquérito sobre o assalto à Petrobrás vem demonstrando. Mas é igualmente certo que as elites sempre ajustaram seu apetite ao prato que lhes era oferecido; ministro da economia em duas ocasiões, durante os governos militares, Delfim Netto constatou mas por certo não lamentou o comportamento mamativo dos empresários, e muito menos se empenhou em de alterá-lo.
Dizer que os pequenos e médios empresários também sempre viveram mamando nas tetas do Estado seria uma cruel injustiça, pois entre eles, bem o sabemos, só sobrevivem aqueles que conseguem matar um leão por dia. Os governos, com raras exceções sempre os trataram a pontapés.
Subjacente ao que acima foi dito há evidentemente uma alusão à situação catastrófica em que o país ora se encontra. O espaço disponível não me permite indicar a que ponto fomos levados pelos desmandos, pela incompetência e pela irresponsabilidade populista peço perdão pela redundância- dos governos petistas. Limito-me a observar que nada no momento atual me causa mais espanto que o nível ainda extremamente baixo de mobilização dos setores empresariais, cuja participação é imprescindível para podermos proporcionar à Sra. Dilma Rousseff as férias definitivas que ela tanto fez por merecer.
O último ponto a tratar diz respeito à defesa das instituições democráticas. É assunto para centenas de páginas. Vou abordá-lo somente em conexão com os intelectuais, quero dizer, os professores e estudantes universitários, jornalistas, artistas, clérigos e outros que se distinguem pela capacidade de manipular ideias e símbolos, recurso mediante o qual conseguem fazer a cabeça do país. Claro está que a fazem tanto para o bem como para o mal - os juízos de valor diferem, como é próprio de uma sociedade pluralista e democrática.
Assombroso, no caso, é o grau em que tais setores se deixaram contaminar pelo modo de pensar a que chamam “de esquerda”, um conjunto desconexo de ideias no qual predomina uma devoção incondicional a um líder populista, uma recusa da modernidade na economia e na organização do Estado, uma atitude ambígua, para dizer o mínimo, em relação às instituições democráticas e uma tendência a endossar interpretações francamente maliciosas das estipulações jurídicas que nos regem. A esse respeito, basta observar que a parcela da elite cultural a que me refiro se identifica incondicionalmente, sem se ruborizar, com o populismo petista.
Associar tão estreitamente a noção de esquerda que bem ou mal tem sua densidade histórica- ao populismo é uma aberração poucas vezes igualada na América Latina. Como bem observou o já citado Delfim Netto, se Lula de repente desaparecesse queira Deus que não-, o PT instantaneamente se converteria num pequeno partido reacionário, com o fígado prestes a ser devorado pelas facções que dentro dele se digladiam, hostil a todas as reformas que o Brasil precisa empreender para retomar o caminho do desenvolvimento econômico, social e educacional.
Consistentemente ambíguo em relação às instituições democráticas ao longo de seus 36 anos de história, o PT e seus adeptos intelectualizados coroam essa trajetória de equívocos emprestando seu prestígio ao discurso trapaceiro - “não haverá golpe”- que o governo Dilma Rousseff se aferra como sua última linha de defesa e até a disparates de proporção sideral como a recente declaração da professora Chauí a respeito do juiz Sérgio Moro.




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