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SOBRE O HOMEM AÉREO EM KAFKA
Acadêmico: Luiz Carlos Lisboa
"Kafka tinha motivos de sobra para se pensar um homem triste, mas esse autor que Carlos Drummond de Andrade teria talvez chamado de “gauche na vida”, como chamou a si mesmo, foi afinal algo bem diferente de um sujeito apenas inadequado, tendo após a morte conquistado a admiração do mundo por sua obra fantástica e ao mesmo tempo realista na forma"

O adjetivo “kafkiano” que ganhou vida entre as duas guerras mundiais para significar algo sombrio, alheio ao ambiente, complexo e obscuro, hoje anda nos lábios até de quem nunca ouviu falar em Franz Kafka. O autor admirável de “A metamorfose”, que como última vontade pediu que sua obra jamais fosse lida pelo mundo, não foi atendido nesse seu derradeiro intento. Nem antes, também, quando enviou uma carta ao pai e ela foi interceptada por sua mãe. Kafka tinha motivos de sobra para se pensar um homem triste, mas esse autor que Carlos Drummond de Andrade teria talvez chamado de “gauche na vida”, como chamou a si mesmo, foi afinal algo bem diferente de um sujeito apenas inadequado, tendo após a morte conquistado a admiração do mundo por sua obra fantástica e ao mesmo tempo realista na forma. Poucos autores, como ele, revelaram nos seus personagens a grandeza imensa de um caminhante solitário e de um narrador perfeito nos labirintos da vida humana.
Muito se escreveu sobre Kafka e um pouco menos sobre seu conto “A metamorfose”, mas o que se disse do herói mutante nessa obra , foi nebuloso e pouco esclarecedor porque não se o comparou com os personagens centrais dos seus outros contos e romances. Depois da Segunda Guerra Mundial e até a queda do Muro de Berlim, esse que é com razão considerado hoje um dos maiores nomes da literatura alemã permaneceu ignorado como se nunca tivesse existido. É verdade que ele era perigoso demais em todo regime onde qualquer metáfora seria julgada como subversão. O que é fascinante na ficção kafkiana é o fato de todos os seus heróis serem observadores perplexos da condição humana, entregues à absurda e única experiência de estarem vivos. Assim, o Gregor Samsa de “A metamorfose”, o Joseph K de “O processo” e o humilde K de “O castelo”, para citar só esses, são o mesmo tipo de pessoa, fração humana que olha o mundo no qual foi lançada sem qualquer escolha, devendo um dia partir dela sem qualquer resposta provada, embora às vezes consolado pela luz da fé.
Sabe-se que Kafka foi leitor dedicado de Platão,que ele leu em grego, de Dostoiévski, que conheceu em tradução alemã e de Flaubert, que saboreou em francês. De tudo que se comentou a respeito em “A metamorfose”, um conto perfeito, ficou a idéia de repulsa pelo inseto enorme, mas pouco se mostrou da indiferença e até da vergonha familiar em face do mundo, isto é, do outro. Ser um “tipo estranho”, um desvio anômalo em seu meio, equivalia a uma humilhação naquela Praga solene, burguesa, convencional. O pai, a mãe, a irmã Grete preferiam no fundo que ele morresse, a envergonhá-los com a sua deformidade quase obscena. Antes mostrasse um aleijão humano, reconhecível pelo comum dos homens, mas nunca aquele inseto monstruoso, vivo e falante. Esse não era mais o filho de uma família respeitável. Em Dostoiévsky, um dos pais do Existencialismo, Kafka foi desenterrar as raízes do seu ateísmo, sua desesperança, seus personagens sem certezas, sua perdição em plena vida.
Samsa não se surpreende ao acordar mudado num inseto de dimensão humana. Na verdade ele se admira com a admiração dos outros, com a estranheza e a repulsa alheias. Quer seguir sua rotina de vida como sempre, aquilo para o que foi condicionado, mas a opinião dos outros corta pela raiz sua esperança. Como ser feliz sendo tão diferente? Como é sensível, percebe a rejeição à sua volta, e aos poucos se torna o que os alemães chamam de Luftmensch, um “homem aéreo”. Essa expressão foi cunhada por Marx para designar o indivíduo sem profissão definida e depois foi usada por sociólogos e psicólogos para falar da pessoa que olha o mundo e a cultura dominante sem qualquer adesão ou compromisso, a fim de permanecer aberto à realidade pura e simples. Samsa não acordou para isso um certo dia, ele foi sempre assim. Por isso a narração do conto começa na descoberta desse estado por Gregor um modo se ser perante o mundo bastante familiar a Kafka mas uma abominação para um chefe de família europeu do Século XIX. Tratava-se, na verdade, de alguém julgado com rigor pelos que desconheciam em si esse estado “aéreo”, considerando-o no outro uma forma de oportunismo. O resultado desse desencontro era o conflito familiar da família Kafka, sempre reativado por seu chefe até que o filho “preguiçoso” abandonou o lar, levando consigo seu “aerismo”, tão repulsivo quanto a presença de um inseto monstruoso num dos quartos da casa.
Quando se diz que “A metamorfose” de Kafka é uma “autobiografia existencialista”, contada pelo protagonista Gregor Samsa, está sendo dito que esse conto é uma história da vida do autor, como também o são os contos e romances dele e de muitos homens que estranharam o mundo em que se percebiam como seres à parte. De modo característico como o próprio Kafka, nos diversos momentos de sua vida em que fez amigos da estatura de um Max Brod e quando fez amor com mulheres que o amaram, e que ele amou. Mas como Gregor Samsa, Franz Kafka, apesar de sua genialidade ou por causa dela, foi sempre um “homem aéreo”, um pensador profundo capaz de fazer uma notação detalhada e quase naturalista dos desdobramentos e das conseqüências da sua metamorfose. Sempre com o coração sangrando mas com uma leve ironia nos lábios e na pena.




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