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O PAPA E A ANEDOTA
Acadêmico: José de Souza Martins
"Tudo indica que o apreço de Bento XVI pelas anedotas tem muito de apelo a uma contracultura do riso na vida cotidiana, que contraste, criticamente, com a banalização de tudo, até mesmo da religião e da fé."

Num colóquio que teve com um pequeno grupo de jornalistas alemães, há algum tempo, o então papa Bento XVI referiu-se à importância do riso e da anedota na vida das pessoas. Um pouco acanhado, sorrindo levemente, explicou que gostava de ouvir anedotas, mas que, no entanto, ele próprio não era muito bom para contá-las. Fazia reparos à religiosidade carrancuda, disseminada não só entre católicos.
A religiosidade de cenho franzido tem sido indício de reação e temor à crescente secularização da sociedade contemporânea, marcada pela transformação de tudo em equivalente e banal. É a lógica pobre e quantitativa da mercadoria e do dinheiro, que a tudo equipara. O comentário do Papa expressa uma preocupação com essa religiosidade de refúgio, passiva e tímida. O interesse pelo riso e pela alegria, que ele manifestou nessa ocasião, filia-se a um aspecto importante da cultura ocidental, forte na cultura popular: o da anedota como ferramenta de consciência social, especialmente dos frágeis e oprimidos, e o riso como sua expressão e sua linguagem.
Alguns dos melhores contadores de anedotas que conheço são padres. Um deles, gaúcho, nos difíceis tempos da ditadura militar, tempos de perseguição a sacerdotes, religiosas e leigos engajados, era um dos principais animadores dos intervalos das reuniões das pastorais sociais, com suas impagáveis anedotas sobre militares. Num regime de tortura, de censura e de repressão, suas anedotas, inteligentes, divertidas e precisas, mostravam as contradições do regime, seus absurdos e suas injustiças. A gargalhada dos simples demolia simbolicamente o autoritarismo dos prepotentes, desconstruía a identidade do opressor. Ele contava as piadas em pequenos grupos, entrando nas conversas sérias como se séria fosse a história que ia contar. Narrava sem rir, timidamente, com um proposital ar de ingenuidade e demonstrava fingida surpresa quando os outros riam com o desfecho da história.
Contar anedotas é uma arte que se filia ao teatro de rua que existiu no passado, o teatro de feira. Péssimo é o contador de piadas que ri antes de contá-las, que ri durante a narrativa ou que ao, terminar uma piada sem graça, conta o desfecho várias vezes, rindo sozinho, para ver se alguém o acompanha.
Tudo indica que o apreço de Bento XVI pelas anedotas tem muito de apelo a uma contracultura do riso na vida cotidiana, que contraste, criticamente, com a banalização de tudo, até mesmo da religião e da fé. Sua posição parece situar-se na linha própria de seu pontificado, do retorno ao sagrado, mediante práticas de hierarquização do real, de modo que a específica monumentalidade do sagrado não seja confundida com a inespecífica banalidade do profano. O riso contribui para definir contornos e indicar aquilo de que se deve rir e aquilo que se deve levar a sério.



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