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OS GUARDADOS DA CARTA RASGADA
Acadêmico: Gabriel Chalita
Pedaços de cartas rasgadas no fundo da memória.

Resolvi a limpeza. Acordei decidida a tirar o bolor da preguiça e a jogar fora o que não é de dentro.  Abri uns guardados e vi as lembranças. Algumas me trouxeram riso. 
Pedaços de cartas rasgadas no fundo da memória.

Lembrei o colégio de freiras, onde menina frequentava a diretoria por ser mais rebelde que o permitido. Lembrei a irmã Ângela, tão quieta e tão guardadora de mistérios. Ela ajudava o médico que, semanalmente, nos vigiava a saúde. Fugiram juntos.

Acompanhei, por algum tempo, os medos que irmã Ângela carregava. Medo de ter chateado Deus. Eu, na minha rebeldia, expliquei que Deus não se chateia com amor. Que fosse ela feliz. Que fossem eles felizes. Soube dos filhos que nasceram. Soube da vida boa que construíram.

Eu demorei a me entregar a um amor. Desconfiada, desconfiei dos que chegavam oferecendo perfeições. Demorei a perceber o quanto as rejeições de infância impediam relações maduras. Quis um homem para cuidar das feridas que não conhecia. Meu pai preferia os filhos homens a mim. Não era o que dizia. Era o que eu ouvia. 

Ainda tenho fotos da primeira história antes da separação. Foi ele que decidiu partir. E fui eu que decidi insistir. Resultaram em nada os meus esforços. Eu o vi com uma outra em lugar comum. O incomum era tentar adivinhar os sentimentos dele. Era criar uma história, dentro de mim mesma, de que ele só estava com ela para chamar a minha atenção. Era esperar o abrir da porta e o seu pedido de desculpas. 

A porta permaneceu fechada, por algum tempo, até que chegou Orlando. E foi com ele que me casei. E foi com ele que dividi a parte mais significativa da minha vida.  Venci, aos poucos, os egoísmos. Abandonei as ganâncias para exercitar a generosidade e o amor. Tivemos dois filhos. Crescidos, já.  Orlando é trabalhador dedicado, na profissão e no amor. Trabalha em mim as inseguranças que persistem.

Venho envelhecendo, o que não deveria me causar estranheza. Súbito, olho no espelho uma mulher que desconheço. Queria ser mais menina, queria ter mais tempo, queria não usar tanta maquiagem. Não, não sou velha. Sou uma mulher com alguns anos a mais do que sessenta. Minha avó era velha aos quarenta. Os tempos são outros. Gosto, quando pensam que sou irmã de minha filha. Eu rio e desminto imediatamente. E guardo a alegria daquele instante por algum tempo. 

Ontem, achei uma carta de meu primeiro amor. Ou pedaços dela. Senti falta do que sentia, quando ele não vinha. Senti o ridículo do sentimento. Arranjei uma coragem para jogar fora, inclusive, algumas fotografias. Não sei se olhava para ele ou para mim naquela época.

Deu saudade daquele tempo. Do tempo onde tudo era futuro. Lembrei-me de quando estava grávida. Meus filhos já precisam pouco de mim. E, hoje, eu precisaria tanto de minha mãe! Morreu jovem a minha mãe. Encontro um riso, quando me lembro de ter dito sobre irmã Ângela para ela. Do seu assustado trazer as mãos ao peito e suspirar. Minha mãe só via santidade nos religiosos. Já eu, só vejo a santidade no amor.

Meu filho se chama Francisco, o santo do amor. E minha filha se chama Teresinha, a menina das pétalas de rosas.  Quando arrumo o jardim de casa, geralmente agradeço. Sou terra, também. Com raízes e com inclinação para crescer para o alto.

Orlando prossegue me surpreendendo com bilhetes de amor. Esses, eu guardo todos e os revisito sempre. Aprendi a não rasgar o que me faz inteira.



Publicado no site do jornal O Dia, 03 de julho de 2022.



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